ATENÇÃO: CONTÉM
SPOILERS!
Como todo nerd que
se preze, tive contato com O Senhor dos
Anéis durante minha adolescência. Nem preciso dizer que a magistral obra de
J. R. R. Tolkien afetou profundamente o modo como via - e ainda vejo - várias
coisas, não é? Entretanto, à medida que se envelhece/amadurece começamos a
perceber que o mundo real é muito pouco parecido com a Terra Média e que a
história sobre o Um Anel é muito mais parecida com um conto de fadas que com as
histórias de nosso próprio mundo real. Eis que alguns anos após meu primeiro
contato com a obra de Tolkien, conheci outra saga épica que, ao que tudo
indica, pode realmente rivalizar com o mítico Senhor dos Anéis. Estou falando
de As Crônicas de Gelo – mais
conhecida como Game of Thrones, nome
da adaptação para a TV produzida pela HBO – de George R. R. Martin. Antes que
você se pergunte – porque eu sei que você já está se perguntando – este texto
não é mais uma daquelas tentativas imbecis infrutíferas de dizer que um
é melhor que o outro ou coisa do tipo. A questão aqui é mostrar como cada
história retrata o seu respectivo mundo e como isto afeta a própria visão de
mundo do leitor que se vê envolvido pela história.
A história de
Tolkien se passa num mundo chamado Terra Média, habitado por homens, elfos,
anões, hobbits, orcs e monstros de todo o tipo. À sua própria maneira, O Senhor dos Anéis é um conto de fadas,
uma inspiradora história sobre uma grande guerra na qual há uma distinção clara
entre heróis e vilões, entre o bem e o mal. É um quadro em preto e branco, onde
cada figura se encaixa claramente em um dos lados. Já a saga em construção de George
R. R. Martin retrata as disputas pelo poder no reino de Westeros, um mundo
povoado por personagens densos e complexos e onde realidade histórica e
fantasia se misturam. Aqui, além da guerra, está sempre presente a incessante
disputa por poder entre diferentes partes, sem que se possa distinguir
claramente os heróis dos vilões – se é que eles existem como tais. O quadro
retratado por Martin é cinzento, as figuras são disformes e móveis e tudo está
em variados tons de cinza.
Boromir (Senhor dos Anéis) e Eddard Stark (Game of Thrones), interpretados pelo ator inglês Sean Bean. Personagens diferentes em mundos diferentes com algo mais em comum além do ator. |
Embora sejam
histórias bastante diferentes, ambas têm algumas semelhanças (começando pelas
iniciais do meio de seus respectivos autores). Ambas são histórias fantasiosas
que refletem, em maior ou menor medida e cada uma à sua maneira, acontecimentos
do mundo real. Ambas têm uma temática medieval, histórias e tramas densas e
personagens marcantes, que despertam o amor ou o ódio dos leitores. Porém, as
semelhanças (pelo menos as mais importantes) param aqui. E são justamente as
(enormes) diferenças que chamam a atenção...
Não vou entrar em
detalhes desnecessários a fim de não prolongar demasiadamente o texto, mas vale
lembrar, antes de tudo, que cada uma das obras foi escrita por autores
completamente diferentes e em momentos e contextos históricos totalmente
distintos. Tolkien, de nacionalidade inglesa, escreveu sua obra em plena
Segunda Guerra Mundial, enquanto que Martin, norte-americano, começou a escrever
sua saga nos anos 1990 – e ainda não a concluiu. E isto e apenas o começo...
[SPOILER] Em O Senhor dos Anéis, a guerra dos povos
livres da Terra Media contra o Senhor do Escuro Sauron termina com a vitoria
dos heróis, belíssimos casamentos – do tipo daqueles que toda garota sonha em
ter – e comoventes reuniões de amigos. Só faltou o “e foram felizes para sempre”.
Em As Crônicas de Gelo e Fogo – ou
pelo menos ate onde eu li – uma sucessão de rebeliões e crises de sucessão ao
trono de Westeros coloca algumas das principais casas (famílias) nobres do
reino umas contra as outras. Aqui, nem todos os heróis são vitoriosos – muito
pelo contrario, alguns dos personagens mais admiráveis em termos de caráter são
justamente os que se dão pior – astúcia e falta de escrúpulos sobrepujam a
honra e a justiça e as traições são freqüentes e, na maioria dos casos,
impunes. Qualquer semelhança com o mundo real é “mera coincidência”.
Para bom entendedor,
meia palavra basta. Portanto se você é razoavelmente sagaz já percebeu onde
quero chegar, certo? Pois bem, é isso mesmo...
Diferentemente da
Guerra do Anel – que lembra muito a Segunda Guerra Mundial e um pouco a Guerra
Fria – retratada por Tolkien, as guerras do mundo de Martin se parecem mais com
as eleições do Brasil – sim, a canalhice lá corre solta! Começa que,
diferentemente de O Senhor dos Anéis,
As Crônicas de Gelo e Fogo são
contadas por personagens que se encontram em ambos – ou melhor, em TODOS – os lados
da historia (a situação é tão complexa que é difícil estabelecer apenas dois
lados), e a situação dos mesmos nem sempre é a mesma. Alguns personagens que
começam como vilões odiosos se tornam menos “maus” depois de um tempo e passam
a se mostrar mais como “pessoas comuns”. Outros personagens claramente
retratados como heróis são corrompidos – ou ao menos mudados – pelo poder
imbuído nos cargos que assumem. Casais se separam, famílias são destruídas,
crianças inocentes passam a matar para sobreviver. Enfim, todo tipo de desgraça
que não acontece na Terra Media acontece em Westeros. E é justamente aí que jaz
a maior qualidade da saga de Martin, pois por mais fantasiosa que seja sua
historia, seu mundo e os personagens que o povoam são bastante reais (às vezes
até demais). E é justamente aqui que quero chegar...
Quando somos jovens
sonhamos em viver na Terra Media e acreditamos que nossas vidas serão como a
dos personagens de O Senhor dos Anéis.
Ou seja, mesmo que lutemos em grandes guerras e enfrentemos enormes desafios e
inimigos terríveis, ao final de tudo casaremos com o amor de nossas vidas,
voltaremos para nossas casas, festejaremos com nossos amigos e seremos felizes
para sempre. As Crônicas de Gelo e Fogo
representam, nesse sentindo, o choque de realidade perfeito, mostrando que
coisas ruins acontecem às pessoas de bem sim – muito mais do que gostaríamos.
Não basta sermos boas pessoas, termos uma atitude correta e sermos fiéis aos
nossos amigos, pois o mundo real – assim como Westeros – está cheio de leões,
lobos, lulas gigantes, dragões e coisas piores. [SPOILER] Enquanto em O Senhor dos Anéis Aragorn enfrenta
abertamente o terrível Sauron e consegue não somente reclamar o trono de Gondor
como também casar com seu grande amor, em As
Crônicas de Gelo e Fogo, o honorável Eddard Stark – cuja honra e retidão
são comparáveis ao mais exemplar dos samurais – mantém-se fiel aos seus amigos,
sua família e seus princípios, apenas para ser traído por alguém em quem
confiou, ser acusado (falsamente) de traição e ser decapitado – pela própria
espada ainda por cima! – por um crime que não cometeu. Nada sintetiza mais a
dura realidade (real) de Westeros que a icônica frase de Cersei Lannister – uma
das personagens mais odiáveis da saga – “no jogo dos tronos ou se ganha ou se
morre, não há meio termo.”
Por
fim, antes que eu seja taxado de sujeito amargurado e de pobre diabo,
permita-me delinear uma breve conclusão (parcial). Embora admire o realismo nu e
cru de Martin isto não quer dizer que eu tenha jogado fora minha cópia de O Senhor dos Anéis e que tenha passado a
achá-lo um lixo infantil. Muito pelo contrário, meu gosto pelo mesmo se mantém
inabalado. O que quero dizer é que os rumos da história desenhada por Martin –
pelo menos até aqui – nos mostram que, independentemente da qualidade de nosso
caráter e de nossos princípios morais, se não soubermos jogar o jogo dos tronos
– ou o jogo da vida – podemos acabar tendo um fim totalmente diferente dos
personagens de Tolkien. Enfim, sejam honestos e corretos como Aragorn e Eddard
Stark, mas tomem cuidado, pois nem todos que nos rodeiam são como Gandalf.
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