domingo, 1 de julho de 2012

Da Terra Média para Westeros: como a leitura de As Crônicas de Gelo e Fogo tem mudado minha visão de mundo


ATENÇÃO: CONTÉM SPOILERS!

Como todo nerd que se preze, tive contato com O Senhor dos Anéis durante minha adolescência. Nem preciso dizer que a magistral obra de J. R. R. Tolkien afetou profundamente o modo como via - e ainda vejo - várias coisas, não é? Entretanto, à medida que se envelhece/amadurece começamos a perceber que o mundo real é muito pouco parecido com a Terra Média e que a história sobre o Um Anel é muito mais parecida com um conto de fadas que com as histórias de nosso próprio mundo real. Eis que alguns anos após meu primeiro contato com a obra de Tolkien, conheci outra saga épica que, ao que tudo indica, pode realmente rivalizar com o mítico Senhor dos Anéis. Estou falando de As Crônicas de Gelo – mais conhecida como Game of Thrones, nome da adaptação para a TV produzida pela HBO – de George R. R. Martin. Antes que você se pergunte – porque eu sei que você já está se perguntando – este texto não é mais uma daquelas tentativas imbecis infrutíferas de dizer que um é melhor que o outro ou coisa do tipo. A questão aqui é mostrar como cada história retrata o seu respectivo mundo e como isto afeta a própria visão de mundo do leitor que se vê envolvido pela história.

A história de Tolkien se passa num mundo chamado Terra Média, habitado por homens, elfos, anões, hobbits, orcs e monstros de todo o tipo. À sua própria maneira, O Senhor dos Anéis é um conto de fadas, uma inspiradora história sobre uma grande guerra na qual há uma distinção clara entre heróis e vilões, entre o bem e o mal. É um quadro em preto e branco, onde cada figura se encaixa claramente em um dos lados. Já a saga em construção de George R. R. Martin retrata as disputas pelo poder no reino de Westeros, um mundo povoado por personagens densos e complexos e onde realidade histórica e fantasia se misturam. Aqui, além da guerra, está sempre presente a incessante disputa por poder entre diferentes partes, sem que se possa distinguir claramente os heróis dos vilões – se é que eles existem como tais. O quadro retratado por Martin é cinzento, as figuras são disformes e móveis e tudo está em variados tons de cinza.


Boromir (Senhor dos Anéis) e Eddard Stark (Game of Thrones), interpretados pelo ator inglês Sean Bean. Personagens diferentes em mundos diferentes com algo mais em comum além do ator.


Embora sejam histórias bastante diferentes, ambas têm algumas semelhanças (começando pelas iniciais do meio de seus respectivos autores). Ambas são histórias fantasiosas que refletem, em maior ou menor medida e cada uma à sua maneira, acontecimentos do mundo real. Ambas têm uma temática medieval, histórias e tramas densas e personagens marcantes, que despertam o amor ou o ódio dos leitores. Porém, as semelhanças (pelo menos as mais importantes) param aqui. E são justamente as (enormes) diferenças que chamam a atenção...

Não vou entrar em detalhes desnecessários a fim de não prolongar demasiadamente o texto, mas vale lembrar, antes de tudo, que cada uma das obras foi escrita por autores completamente diferentes e em momentos e contextos históricos totalmente distintos. Tolkien, de nacionalidade inglesa, escreveu sua obra em plena Segunda Guerra Mundial, enquanto que Martin, norte-americano, começou a escrever sua saga nos anos 1990 – e ainda não a concluiu. E isto e apenas o começo...

[SPOILER] Em O Senhor dos Anéis, a guerra dos povos livres da Terra Media contra o Senhor do Escuro Sauron termina com a vitoria dos heróis, belíssimos casamentos – do tipo daqueles que toda garota sonha em ter – e comoventes reuniões de amigos. Só faltou o “e foram felizes para sempre”. Em As Crônicas de Gelo e Fogo – ou pelo menos ate onde eu li – uma sucessão de rebeliões e crises de sucessão ao trono de Westeros coloca algumas das principais casas (famílias) nobres do reino umas contra as outras. Aqui, nem todos os heróis são vitoriosos – muito pelo contrario, alguns dos personagens mais admiráveis em termos de caráter são justamente os que se dão pior – astúcia e falta de escrúpulos sobrepujam a honra e a justiça e as traições são freqüentes e, na maioria dos casos, impunes. Qualquer semelhança com o mundo real é “mera coincidência”.

Para bom entendedor, meia palavra basta. Portanto se você é razoavelmente sagaz já percebeu onde quero chegar, certo? Pois bem, é isso mesmo...

Diferentemente da Guerra do Anel – que lembra muito a Segunda Guerra Mundial e um pouco a Guerra Fria – retratada por Tolkien, as guerras do mundo de Martin se parecem mais com as eleições do Brasil – sim, a canalhice lá corre solta! Começa que, diferentemente de O Senhor dos Anéis, As Crônicas de Gelo e Fogo são contadas por personagens que se encontram em ambos – ou melhor, em TODOS – os lados da historia (a situação é tão complexa que é difícil estabelecer apenas dois lados), e a situação dos mesmos nem sempre é a mesma. Alguns personagens que começam como vilões odiosos se tornam menos “maus” depois de um tempo e passam a se mostrar mais como “pessoas comuns”. Outros personagens claramente retratados como heróis são corrompidos – ou ao menos mudados – pelo poder imbuído nos cargos que assumem. Casais se separam, famílias são destruídas, crianças inocentes passam a matar para sobreviver. Enfim, todo tipo de desgraça que não acontece na Terra Media acontece em Westeros. E é justamente aí que jaz a maior qualidade da saga de Martin, pois por mais fantasiosa que seja sua historia, seu mundo e os personagens que o povoam são bastante reais (às vezes até demais). E é justamente aqui que quero chegar...

Quando somos jovens sonhamos em viver na Terra Media e acreditamos que nossas vidas serão como a dos personagens de O Senhor dos Anéis. Ou seja, mesmo que lutemos em grandes guerras e enfrentemos enormes desafios e inimigos terríveis, ao final de tudo casaremos com o amor de nossas vidas, voltaremos para nossas casas, festejaremos com nossos amigos e seremos felizes para sempre. As Crônicas de Gelo e Fogo representam, nesse sentindo, o choque de realidade perfeito, mostrando que coisas ruins acontecem às pessoas de bem sim – muito mais do que gostaríamos. Não basta sermos boas pessoas, termos uma atitude correta e sermos fiéis aos nossos amigos, pois o mundo real – assim como Westeros – está cheio de leões, lobos, lulas gigantes, dragões e coisas piores. [SPOILER] Enquanto em O Senhor dos Anéis Aragorn enfrenta abertamente o terrível Sauron e consegue não somente reclamar o trono de Gondor como também casar com seu grande amor, em As Crônicas de Gelo e Fogo, o honorável Eddard Stark – cuja honra e retidão são comparáveis ao mais exemplar dos samurais – mantém-se fiel aos seus amigos, sua família e seus princípios, apenas para ser traído por alguém em quem confiou, ser acusado (falsamente) de traição e ser decapitado – pela própria espada ainda por cima! – por um crime que não cometeu. Nada sintetiza mais a dura realidade (real) de Westeros que a icônica frase de Cersei Lannister – uma das personagens mais odiáveis da saga – “no jogo dos tronos ou se ganha ou se morre, não há meio termo.”

Por fim, antes que eu seja taxado de sujeito amargurado e de pobre diabo, permita-me delinear uma breve conclusão (parcial). Embora admire o realismo nu e cru de Martin isto não quer dizer que eu tenha jogado fora minha cópia de O Senhor dos Anéis e que tenha passado a achá-lo um lixo infantil. Muito pelo contrário, meu gosto pelo mesmo se mantém inabalado. O que quero dizer é que os rumos da história desenhada por Martin – pelo menos até aqui – nos mostram que, independentemente da qualidade de nosso caráter e de nossos princípios morais, se não soubermos jogar o jogo dos tronos – ou o jogo da vida – podemos acabar tendo um fim totalmente diferente dos personagens de Tolkien. Enfim, sejam honestos e corretos como Aragorn e Eddard Stark, mas tomem cuidado, pois nem todos que nos rodeiam são como Gandalf.

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