domingo, 8 de julho de 2012

O UFC e os pequenos monstros dentro de cada um de nós


O quê torna esta cena cada vez mais atraente?


Dentre as diversas modalidades esportivas existentes, a que mais cresce atualmente em termos de audiência no Brasil é o chamado MMA, sigla para Mixed Martial Arts (Artes Marciais Mistas em inglês), mais especificamente o torneio intitulado UFC (Ultimate Fighting Championship). Na teoria, é uma competição na qual lutadores divididos por categorias de peso se enfrentam dentro de um ringue em forma octógono utilizando-se de diversas técnicas das mais variadas artes marciais, incluindo socos, chutes, cotoveladas, joelhadas, agarrões e luta no solo. Na prática trata-se mais de dois caras de sunguinha que passam a maior parte do tempo se agarrando quase pornograficamente em uma evolução (muito) bizarra do boxe.

Agora que você já sabe do que estou falando e qual é minha opinião a respeito, vamos sair do octógono e pular para a platéia, que consegue ser mais aloprada efusiva que as mais fanáticas torcidas organizadas de futebol. Basta observar o tamanho do público no local da luta e nos respectivos bares e afins que transmitem as mesmas. Lembro-me de estar em um bar com alguns amigos uma vez e ter testemunhado o “espetáculo” que é o público do UFC. Um simples nocaute gerou mais comoção (o bar quase veio abaixo) que qualquer comemoração de gol que eu me lembro (e estamos no Brasil!). Uma experiência dessas associada com uma observação minimamente superficial da cobertura destas lutas – vejam o estardalhaço que fizeram por conta da última luta do Anderson Silva – já te faz perceber a magnitude que o UFC alcançou em meio ao público brasileiro. E a pergunta que me faço aqui é: por quê? Como o Brasil do futebol e da seleção, o Brasil de Ayrton Senna e das corridas de F-1 virou o Brasil do UFC e das pancadarias de Anderson Silva e companhia?

A resposta é bem complexa e contém vários fatores. Um deles – talvez o mais perceptível – seja a quantidade de dinheiro injetado nos eventos e nos lutadores que deles participam (vejam quais marcas patrocinam o UFC e o Anderson Silva, por exemplo). Mas há algo de podre no reino do MMA, algo que jaz na própria lógica do evento e na própria essência do seu público...

O fato é que hoje os seres humanos do século XXI se entusiasmam com o UFC pelo mesmo motivo que a plebe da Roma Antiga lotava as arenas de gladiadores: nós, seres humanos, gostamos de violência! Sem hipocrisia e falso moralismo aqui, por favor, ninguém assiste UFC e afins por causa da qualidade técnica dos lutadores ou pela atmosfera da competição (se fosse assim o Judô e o Taekwondo seriam tão populares nas Olimpíadas quanto o futebol e o vôlei). Não importa quem sejam os lutadores, onde sejam as lutas ou como as mesmas se desenrolam, o que importa é ver sangue no chão do octógono!

Entretanto, por mais (aparentemente) desprezível que seja esse gosto por sangue do ser humano, isto nada mais é do que mais um elemento da sua natureza, assim como o gosto por comida, bebida e sexo. Sim, o ser humano – nós mesmos – somos predadores por natureza. Se não fôssemos não teríamos nos tornado a espécie dominante no planeta Terra e nosso progresso material não se basearia (em sua maior parte) na evolução de nossa capacidade de matarmos uns aos outros. Mesmo que a humanidade tenha evoluído muito dos tempos de Cristo para cá, continuamos tendo este nosso pequeno lado negro, nosso passageiro sombrio, que tem um gosto especial por ver violência, sangue e a submissão do mais fraco pelo mais forte.

Está em nossa natureza, em nossos genes. Quem trabalha com armas de fogo (ou ao menos já teve a experiência de dar uns tiros) sabe como é bom disparar um gatilho. Não é exagero dizer que, ao menos para os homens, atirar é quase tão prazeroso quanto o próprio sexo – inclusive é comum ter uma ereção quando se atira pela primeira vez. E é por isso que a vitória de Anderson Silva no último UFC foi tão acompanhada e festejada quanto a conquista da Libertadores pelo Corinthians.

Mas não para por aí. Nem a nossa natureza nem a natureza das artes marciais milenares que “deram origem” ao UFC é tão simplista. Quando Thomas Hobbes disse que “o homem é o lobo do próprio homem” ele não estava errado, mas também não estava totalmente certo. Se Hobbes retrata o lado mais negativo da natureza humana, outro famoso filósofo fez o maior contraponto possível algumas décadas mais tarde. Jean-Jacques Rousseau, em contraposição à Hobbes, defendia a tese do “bom selvagem”, ou seja, o ser humano nasce bom e o convívio em sociedade o corrompe. Cada um deles utilizou-se dos respectivos argumentos para defender suas idéias acerca de um formato específico de Estado (o “Leviatã” em Hobbes e o “Contrato Social” em Rousseau). A realidade do ser humana, a meu ver, é muito mais próxima do meio termo.

“O bem e o mal convivem dentro de você” era a chamada de uma propaganda de desodorantes há alguns anos atrás. Por mais simplória que pareça, a verdade é bem por aí. Da mesma forma que somos capazes de agir bestialmente em situações de estresse extremo – como aquele famosos caso de uma atropelamento múltiplo de bicicletas em Porto Alegre – também somos dotados de compaixão e altruísmo impressionantes. Basta observar estas pequenas noticiais ocasionais que não conseguem mais que um pequeno espaço no canto do jornal (ou da página do portal de notícias) sobre pessoas comuns que cometem atos extraordinários e se arriscam para salvar outras pessoas – como um pequeno grupo de homens que carregaram uma mulher paraplégica dezenas de andares de escadas abaixo de uma das torres do WTC no 11/09.

Chega a ser paradoxal a existência simultânea destes dois lados da personalidade humana: ao mesmo tempo em que somos capazes de nos destruirmos – e temos gosto em ver-nos matando uns aos outros – também conseguimos nos arriscar por pessoas que nem conhecemos. Agimos ao mesmo tempo em prol e contra a preservação de nossa própria espécie...

Por fim, não se recrimine por gostar de UFC. Você somente está apenas respondendo a um estímulo natural de seu corpo – da mesma forma que sentimos fome ao vermos um belo prato de comida, ficamos com sede ao vermos uma boa bebida e ficamos excitados quando vemos uma mulher (ou um homem) em uma pose sensual. E também não recrimine os praticantes de MMA. Da mesma forma que a prática das artes marciais ensina a utilizar nosso corpo para fins violentos, o verdadeiro Caminho das artes marciais nos ensina quando se utilizar de tais fins. Basta conversar com um professor (sério!) de qualquer arte marcial. As artes marciais sempre se embasam em uma série de princípios morais que afirmam explicitamente que as mesmas jamais devem ser utilizadas para fins violentos – como arrebentar outro ser humano apenas para diversão – e que devemos trabalhar sempre para conter nosso espírito de agressão – esse nosso passageiro sombrio que anseia matar qualquer coisa que respire.

Portanto, quando você estiver em um bar lotado ou na casa de um amigo única e exclusivamente para ver mais uma edição do UFC, não se engane: tanto o que é mostrado na TV quanto a reação do público são pequenas demonstrações do que há de pior no ser humano. Mas lembre-se também que, da mesma forma que o MMA é apenas uma pequena (e distorcida) fração do universo das artes marciais, nosso pequeno lado negro sedento de sangue é apenas um dos vários traços de nossa natureza complexa...

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